quinta-feira, 14 de junho de 2012


Poesia às quintas (3)

António Salvado é natural de Castelo Branco – e aqui foi, durante muitos anos, professor de língua e literatura portuguesas, no Liceu. Foi também diretor do Museu Tavares Proença Júnior, que transformou num centro de irradiação cultural.
É casado com Adelaide Salvado, também professora no Liceu. Aposentados, continuam ambos a investigar e a publicar.


O Coração Sussurrante

O coração sussurrante
a alma aberta
esperavam que virias
aguardavam que terias
de a mim chegar

Foram mares      foram terras
sulcados      atravessadas

Torçal fluindo
eu ia contando o tempo
vencendo as horas      os dias
veloz o medo
adejando entre a neblina

e na orla do desterro
discreto      surgiu teu rosto.

                                   (António Salvado, Matéria de Inquietação, Edit. Associados, pág.45)

Este poema é uma verdadeira joia poética - e é a prova de que António Salvado tem qualidades e capacidade para poder ter optado por uma poesia clara e sempre compreensível.  Na grande maioria dos seus poemas, ele parece ter esquecido que é ao poeta que cabe a tarefa de encontrar uma expressão que possibilite a  partilha  da emoção estética com o leitor  -  preferindo alinhar-se com os poetas vulgarmente apelidados de difíceis. E é pena!

Nós entendemos que o refúgio no difícil é solução frequente de quem não é capaz de ser claro.
Sabeis porque é que há poetas difíceis?  Sobretudo  porque a sua imaginação      não tem como suporte uma equivalente capacidade de expressão. Ou seja: intuem mais do que são capazes de exprimir. Por outras palavras: a sua capacidade de expressão não acompanha a imaginação. Por isso, é-nos é difícil descobrir o que nem eles próprios  foram capazes de dizer.
Mas também reconheço que há poetas - e neles incluo António Salvado - dotados de boa capacidade de expressão, mas que optaram pelo encobrimento, pela reserva, pela ocultação de si...sugerindo aqui e além, mas preservando sempre o que eles supõem ser a sua intimidade. Receiam que o leitor os tome pelo sujeito poético - e ocultam-se, preservam-se, empurram o leitor para a interpretação. Trata-se, penso, de decisão errada.

O poemazinho de hoje é um poema de amor.
A primeira estrofe descreve-nos o sujeito poético numa situação de expectativa. Mas notai que ele não fala de si - mas do coração, que é onde o amor é mais sentido. E mais ainda: o vir, para ele, é a mim chegar. Que bonito!

Fixemo-nos já na estrofe seguinte: um dístico
                        Foram mares    foram terras
                        sulcados    atravessadas

Estamos perante um quiasmo notável.
Notai que o quiasmo (nome de origem grega, derivado da designação da letra X) é uma figura  algo complicada! Mencionam-se  dois elementos, os mares e as terras - e a sua adjetivação respeita a ordem por que foram referidos estes nomes, provocando uma sequência aparentemente anómala: terras / sulcados...

Mas não são  complicadíssimos, sempre, todos os tempos de espera? Não são intermináveis os dias, as semanas...quando vivamente esperamos alguém? Este quiasmo é a figura literária que melhor exprime tal situação.

Na quintilha que se segue, chamo a vossa atenção para o aposto que é aquele constituinte: torçal fluindo.
Notai que o nome torçal existe por derivação regressiva do verbo torcer. Torçal é um cabo (ou um fio) resultante da torção de diversos fios.
O sujeito poético define-se aqui como torçal fluindo, querendo dizer  que contava o tempo, que se contorcia com o tempo... adejando entre a neblina.

Também aquele verbo adejar nos não parece casual. No mesmo livrinho donde retirámos este poema, logo na página 51, há um poema dedicado a  Adê.  Será que aquele adejando  tem tudo a ver com o rosto esperado?  É nossa convicção de que sim. Todos sabeis que a sua mulher, professora também nesta Escola, se chama Adelaide. A linguagem poética é, como sempre vos tenho dito, feita de sinais.

E concluímos:
Da leitura deste e de outros poemas de António Salvado, fica-nos alguma insatisfação pelo facto de ele ter optado por uma tipo de poesia difícil, pouco clara, envolta em permanente receio de se revelar.

Encontramos na sua poesia uma invulgar presença de pausas, que são o modo de ele sugerir ao leitor a descoberta e o encontro com a emoção.  António Salvado não acompanha o leitor na partilha da sua poesia; empurra-o, para que seja este a descobri-la. Estamos, decerto, perante uma opção respeitável - mas é quando ele se decide por uma expressão clara que nós deparamos com a grande poesia.
E, mais uma vez, não esqueçamos: a poesia constitui sempre um texto destinado a entrar num circuito de comunicação, ao encontro do leitor! Por isso, insistimos, a clareza é-lhe essencial.

Uma nota ainda, de caracterização formal: a sua poesia é dominada pela presença do nome, e pelo aposto - o que não é muito frequente, pois é ao adjetivo e ao verbo que cabe a importante função poética de sugerir.
Será por esta falta do adjetivo que ele, com pausas marcadas, nos empurra para o campo do imaginário?
Esta nossa interpretação da poesia como encontro de emoções compreensíveis  é surpreendentemente coincidente com a interpretação que António Salvado  nos dá de seus próprios versos num posfácio da Difícil Passagem publicada em 1962:

            Abro sobre os joelhos o livro enquanto fecho os olhos.
            Procuro ler e do que vi pouco mais encontrei
            que a solidão de me saber fechado como um túmulo.
            .......
            Pequenas linhas, deixam o espaço maior em branco;
            e é nele que se diz a verdade, é nele que vive
            a confissão sincera, a alma aberta, a luz inteira!

É para um espaço em branco onde se diz a verdade, para um espaço em branco onde vive a confissão sincera,
            - é para um espaço em branco, fonte de luz, que a poesia de António Salvado pretende lançar-nos.
Mas... qual o caminho? Ele é que devia indicar-nos o caminho! Não o faz.  Daí a solidão resultante da  sua poesia, por vezes excessivamente fechada.

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