quinta-feira, 21 de junho de 2012




Poesia às quintas (4)

Ana Rita Calmeiro é natural de Castelo Branco.
Estudou aqui, andou por estas mesmas salas de aula – e daqui partiu para Coimbra onde se licenciou em Direito.
Leitora compulsiva, manteve, durante vários anos, a publicação semanal dum artigo sobre obras culturais de publicação recente. Escreve muito bem.
Ela é hoje distintíssima Advogada.
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A Gaivota
                            Quando olho para trás
                            vejo sempre uma gaivota morta
                            crucificada nos meus passos.
                            Pressinto que é a minha alma
                            cansada dos meus voos tão altos!
                               Ana Rita Calmeiro, Luminária, Alma Azul,p.40

Como sabemos, a metáfora consiste na referência a um objeto em vez  de outro, com fundamento na semelhança mútua.

Quando Ana Rita Calmeiro, para nos definir um estado de alma, diz: "quando olho para trás / vejo sempre uma gaivota morta / crucificada nos meus passos " - o que ela faz é criar um símbolo que nos dá uma correspondência sensível dos sentimentos do sujeito poético. Isto é: ela concretiza sentimentos numa imagem, que os traduz e no-los torna inteligíveis.
Ser poeta é isso: ser capaz de criar símbolos que sejam encarnação dos possíveis estados de alma.

A criação poética resulta de dois momentos:
- Momento da inspiração: o poeta capta ou apreende beleza, atravessado por uma emoção. Sente a beleza, delicia-se na beleza – como os não-poetas a sentimos na delícia duma música, na contemplação duma pintura ou na presença dum bailado;
- mas só é poeta quem sentir a necessidade, e for capaz, de criar um texto que partilhe com os outros a beleza intuída: é esse o momento da criação.

Mas não confundais poesia com narração da beleza intuída pelo poeta. Não! O objetivo do Poeta não é contar, mas criar símbolos onde o sujeito poético se reveja e, sobretudo, nos possamos rever também nós.

Voltemos ao poema:
Quando olho para trás... o que vejo são sonhos falhados. É como se visse, por terra, morta, uma gaivota de voo esbelto..
Pressinto que poderá ser esse o destino de minha alma, cansada de voos tão altos.

O Poeta é um contador de estórias, um criador de enredos e de símbolos que tornem sensíveis os sentimentos universais: alegria, angústia, surpresa, medo, esperança. Por isso, não há poesia sem outro, ou seja, o poeta cria para partilhar. Ninguém é poeta para si mesmo.
Será uma forma de disfarce de incapacidades poéticas fechar de tal modo um poema que este se torne incompreensível. A Poesia não é uma ciência enigmática, nem coabita com charadas!
Quando não entenderdes um Poema, deixai-o! O Poeta não foi capaz de ser claro por não ver claro; em vez de sol, ele tinha nuvens, complicações, problemas, charadas dentro de si. Como podemos nós entender tais poetas se eles não são capazes de encontrar expressão inteligível e partilhável? Há um poema VER CLARO de Eugénio de Andrade que é muito elucidativo a este respeito. Estudá-lo-emos.

Vamos reler, agora, o poema da Ana Rita Calmeiro.
         - que clareza!: o símbolo é imediatamente apreendido;          
         - que força!: em poucas palavras, define um estado de alma;
         -que surpresa! - a originalidade do símbolo e a economia de palavras conseguem transmitir-nos um estado de alma complexo em que todos gostamos de nos ler (de nos rever).

Formalmente, estamos perante um poema curto, à maneira do haicai, composição japonesa com 17 sílabas métricas.

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