quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

«Ela foi a Paris com o João» /«Ela vive comigo»

 Diz o Ciberdúvidas:

'Nestas frases, o constituinte «a Paris» desempenha a função de complemento oblíquo, ao passo que os constituintes «com o João» e «comigo» têm a função de modificador do grupo verbal.'(in Ciberdúvidas 38356).

Raciocinemos um pouco: que diferença poderá alguém descobrir  entre estes dois complementos: «ir com o João» ou «viver comigo»?

«Ir com ele» ou «viver com ele» desempenham exatamente a mesma função: são ambos complementos adverbiais ou circunstanciais de companhia.

Os «complemento oblíquo» e os «modificadores do grupo verbal», de que fala o Ciberdúvida, não são funções sintáticas, mas invenções inexplicáveis que o Ciberdúvidas divulga e que dão os frutos que todos conhecemos pela péssima avaliação da Literacia  dos nossos alunos de Português.  

Também no mesmo dia 
uma Colega nossa, do Porto, perguntava ao Ciberdúvidas: Na frase: «Foi com ele e com os saudosistas que Pessoa começou a colaborar, ao alcançar a plena maturidade como escritor», 
- qual a oração desempenhada pelo segmento «que Pessoa começou a colaborar» e qual a sua função sintática?'

Resposta do Ciberdúvidas 'A frase apresentada é uma estrutura clivada ou de foco, que corresponde a uma construção que permite focalizar um dos elementos da frase. Neste caso, o foco recai sobre o complemento direto «com ele e com os saudosistas»  

Ó Ciberdúvidas, que distração é essa? Então «com ele e com os saudosistas»  é complemento direto?????...  Apaguem isso!

A resposta que deveria ser dada, deveria ser: «que Pessoa começou a colaborar» não é oração nenhuma. 

 Mas eu não gosto de deixar a resposta a meio, e faço a análise completa do texto, assim: 

«Foi com ele e com os saudosistas que Pessoa começou a colaborar, ao alcançar a plena maturidade como escritor»

Oração composta   
Suj.: Pessoa; predicado: começou a colaborar com ele e com os saudosistas; complemento adverbial de companhia (ou de colaboração ou comitativo): com ele e com os saudosistas; adjunto adverbial de tempo: ao alcançar a plena maturidade como escritor.

- ao alcançar a plena maturidade como escritor 
Proposição subordinada adverbial temporal

Suj.: ele (ref.: Pessoa); predicado: ao alcançar a plena maturidade; compl. direto: a plena maturidade; predicativo do sujeito: como escritor 
 __________

Como escritor: este COMO é um advérbio relativo, equivalente a na qualidade de, e introduz predicativos. Como escritor é predicativo do sujeito, porque referente a Pessoa, que é sujeito.

Foi …que; é…que… são expressões reforçativas ou de realce, extraoracionais.



terça-feira, 10 de dezembro de 2024

 

O verbo vestir, verbo leve ou de apoio 

Relia eu ontem umas páginas do romance  A Filha do Arcediago, de Camilo, quando me surpreendeu a frase que abaixo transcrevo em negrito:

«A carta, que recebi e devolvi pelo portador, era uma súplica de uma pobre amante de meu pai, que me pedia uma esmola. Fez-me tanta pena, que me vestiu de luto o coração!» (Camilo, A Filha do Arcediago, p. 84).   

Parei nesta proposição consecutiva «que me vestiu de luto o coração» 

Nesta proposição, o predicado é vestiu de luto (enlutou) o coração.

O verbo vestir é, aqui, um verbo leve, de apoio ou de suporte, portador de um nome preposicionado abstrato (de luto), parafraseável por enlutar.

O verbo, em «Vestir de luto o coração» não é certamente um verbo pleno (vestir uma camisa) mas de apoio a um nome abstrato que é o núcleo semântico dum predicado complexo.

ANÁLISE SINTÁTICA da frase

Fez-me tanta pena, que me vestiu de luto o coração!

Oração composta

Suj.: ela (a súplica); predicado complexo: fez-me tanta pena que me …; compl. direto: tanta pena que me vestiu de luto o coração; adjunto adverbial consecutivo: que me vestiu de luto o coração.

Proposição consecutiva 

Suj.: ela (a súplica da pobre amante); predicado complexo: me vestiu de luto o coração; complemento direto: o coração; compl. indireto: -me

O compl. preposicionado de luto pertence ao sintagma verbal: logo, é predicado. [Vestiu de luto:  pôs de luto, fez ficar de luto – enlutou].

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O Dicionário  Houaiss, numa frase «o sol vestiu a tarde de luz» classifica de luz como predicativo do complemento direto -  mas está errado. Vestir, aqui, não é verbo pleno, evidentemente, e o Houaiss errou.

Basta pormos a frase na voz passiva, assim: a tarde foi vestida de luz pelo sol e logo a Língua nos mostra que o compl. preposicionado (de luz) pertence ao sintagma verbal do predicado.