quinta-feira, 28 de junho de 2012


POESIA às Quintas (5)

Meu Caro António Salvado
Hoje passei a tarde consigo, nas AURAS DO EGEU.
Além do prazer da companhia, agradaram-me muito os poemas, todos os poemas. Mas…vai sempre havendo um ou outro que mais nos surpreende. E digo-lhe já quais deles, nesta  primeira e, por enquanto, única leitura, se me agarraram à lembrança: e foram  ASTRO DA MANHÃ, pág. 13 e PEQUENAS COISAS… pág. 41.

Como muito bem sabe, eu não tenho qualquer preparação para crítico literário. Não se pode, pois, esperar dum homem da sintaxe mais do que apreciação de leitor comum. Mas fiquei com a impressão de que o António  Salvado está aqui muito mais Poeta do que aquele que eu conhecia.
Peguei nas AURAS DO EGEU para lhe dar uma volta, ler um poema aqui outro além – e não fui capaz de parar. Li-o todo, de seguida.
Gostei muito.
Partilho com os seguidores do Cibersintaxe o seu

ASTRO DA MANHÃ…

Astro da manhã: amada,
astro da tarde: querida;
tens a luz ao nascer d’alba
e brilhas ao despedir-te –

só quem não soube d’amor
o silêncio de palavras
é que podia      ao alvor
não querer-te     não amar-te,

não esperar-te     pela tarde
para contigo encantar-se.
________________________
Se ainda fosse professor, proporia aos meus alunos a leitura mais ou menos assim:

O Poeta é um contador de estórias por um eu imaginário (o sujeito poético).
É imaginário o sujeito poético, e é imaginada a situação. Literatura é isso: estórias imaginadas.

Neste ASTRO DA MANHÃ, o sujeito poético cria duas personagens femininas, correspondendo cada uma ao tempo de presença junto do amado: uma é o astro da manhã;  a outra, o astro da tarde. Ambas são muito queridas ao sujeito poético que a elas se refere como amada e querida.

Entre as duas, porém, interpõe-se uma ausência.
E esse é o momento decisivo do poema: o seu nó, o seu problema.
Fixemo-nos  nos versos da segunda estrofe: só quem não conheceu o silêncio das palavras de amor, ou o sofrer de ausências, é que poderá imaginar a ausência como um vazio de amor e admitir a possibilidade de:

- não esperar-te pela tarde
para contigo encantar-se.

Também nós ficámos encantados com o reencontro deste amor-encantamento do
António Salvado, que estava já presente no poema aqui apresentado no passado dia 13.

Gostei muito.
Um abraço

quinta-feira, 21 de junho de 2012




Poesia às quintas (4)

Ana Rita Calmeiro é natural de Castelo Branco.
Estudou aqui, andou por estas mesmas salas de aula – e daqui partiu para Coimbra onde se licenciou em Direito.
Leitora compulsiva, manteve, durante vários anos, a publicação semanal dum artigo sobre obras culturais de publicação recente. Escreve muito bem.
Ela é hoje distintíssima Advogada.
___________________

A Gaivota
                            Quando olho para trás
                            vejo sempre uma gaivota morta
                            crucificada nos meus passos.
                            Pressinto que é a minha alma
                            cansada dos meus voos tão altos!
                               Ana Rita Calmeiro, Luminária, Alma Azul,p.40

Como sabemos, a metáfora consiste na referência a um objeto em vez  de outro, com fundamento na semelhança mútua.

Quando Ana Rita Calmeiro, para nos definir um estado de alma, diz: "quando olho para trás / vejo sempre uma gaivota morta / crucificada nos meus passos " - o que ela faz é criar um símbolo que nos dá uma correspondência sensível dos sentimentos do sujeito poético. Isto é: ela concretiza sentimentos numa imagem, que os traduz e no-los torna inteligíveis.
Ser poeta é isso: ser capaz de criar símbolos que sejam encarnação dos possíveis estados de alma.

A criação poética resulta de dois momentos:
- Momento da inspiração: o poeta capta ou apreende beleza, atravessado por uma emoção. Sente a beleza, delicia-se na beleza – como os não-poetas a sentimos na delícia duma música, na contemplação duma pintura ou na presença dum bailado;
- mas só é poeta quem sentir a necessidade, e for capaz, de criar um texto que partilhe com os outros a beleza intuída: é esse o momento da criação.

Mas não confundais poesia com narração da beleza intuída pelo poeta. Não! O objetivo do Poeta não é contar, mas criar símbolos onde o sujeito poético se reveja e, sobretudo, nos possamos rever também nós.

Voltemos ao poema:
Quando olho para trás... o que vejo são sonhos falhados. É como se visse, por terra, morta, uma gaivota de voo esbelto..
Pressinto que poderá ser esse o destino de minha alma, cansada de voos tão altos.

O Poeta é um contador de estórias, um criador de enredos e de símbolos que tornem sensíveis os sentimentos universais: alegria, angústia, surpresa, medo, esperança. Por isso, não há poesia sem outro, ou seja, o poeta cria para partilhar. Ninguém é poeta para si mesmo.
Será uma forma de disfarce de incapacidades poéticas fechar de tal modo um poema que este se torne incompreensível. A Poesia não é uma ciência enigmática, nem coabita com charadas!
Quando não entenderdes um Poema, deixai-o! O Poeta não foi capaz de ser claro por não ver claro; em vez de sol, ele tinha nuvens, complicações, problemas, charadas dentro de si. Como podemos nós entender tais poetas se eles não são capazes de encontrar expressão inteligível e partilhável? Há um poema VER CLARO de Eugénio de Andrade que é muito elucidativo a este respeito. Estudá-lo-emos.

Vamos reler, agora, o poema da Ana Rita Calmeiro.
         - que clareza!: o símbolo é imediatamente apreendido;          
         - que força!: em poucas palavras, define um estado de alma;
         -que surpresa! - a originalidade do símbolo e a economia de palavras conseguem transmitir-nos um estado de alma complexo em que todos gostamos de nos ler (de nos rever).

Formalmente, estamos perante um poema curto, à maneira do haicai, composição japonesa com 17 sílabas métricas.

quinta-feira, 14 de junho de 2012


Poesia às quintas (3)

António Salvado é natural de Castelo Branco – e aqui foi, durante muitos anos, professor de língua e literatura portuguesas, no Liceu. Foi também diretor do Museu Tavares Proença Júnior, que transformou num centro de irradiação cultural.
É casado com Adelaide Salvado, também professora no Liceu. Aposentados, continuam ambos a investigar e a publicar.


O Coração Sussurrante

O coração sussurrante
a alma aberta
esperavam que virias
aguardavam que terias
de a mim chegar

Foram mares      foram terras
sulcados      atravessadas

Torçal fluindo
eu ia contando o tempo
vencendo as horas      os dias
veloz o medo
adejando entre a neblina

e na orla do desterro
discreto      surgiu teu rosto.

                                   (António Salvado, Matéria de Inquietação, Edit. Associados, pág.45)

Este poema é uma verdadeira joia poética - e é a prova de que António Salvado tem qualidades e capacidade para poder ter optado por uma poesia clara e sempre compreensível.  Na grande maioria dos seus poemas, ele parece ter esquecido que é ao poeta que cabe a tarefa de encontrar uma expressão que possibilite a  partilha  da emoção estética com o leitor  -  preferindo alinhar-se com os poetas vulgarmente apelidados de difíceis. E é pena!

Nós entendemos que o refúgio no difícil é solução frequente de quem não é capaz de ser claro.
Sabeis porque é que há poetas difíceis?  Sobretudo  porque a sua imaginação      não tem como suporte uma equivalente capacidade de expressão. Ou seja: intuem mais do que são capazes de exprimir. Por outras palavras: a sua capacidade de expressão não acompanha a imaginação. Por isso, é-nos é difícil descobrir o que nem eles próprios  foram capazes de dizer.
Mas também reconheço que há poetas - e neles incluo António Salvado - dotados de boa capacidade de expressão, mas que optaram pelo encobrimento, pela reserva, pela ocultação de si...sugerindo aqui e além, mas preservando sempre o que eles supõem ser a sua intimidade. Receiam que o leitor os tome pelo sujeito poético - e ocultam-se, preservam-se, empurram o leitor para a interpretação. Trata-se, penso, de decisão errada.

O poemazinho de hoje é um poema de amor.
A primeira estrofe descreve-nos o sujeito poético numa situação de expectativa. Mas notai que ele não fala de si - mas do coração, que é onde o amor é mais sentido. E mais ainda: o vir, para ele, é a mim chegar. Que bonito!

Fixemo-nos já na estrofe seguinte: um dístico
                        Foram mares    foram terras
                        sulcados    atravessadas

Estamos perante um quiasmo notável.
Notai que o quiasmo (nome de origem grega, derivado da designação da letra X) é uma figura  algo complicada! Mencionam-se  dois elementos, os mares e as terras - e a sua adjetivação respeita a ordem por que foram referidos estes nomes, provocando uma sequência aparentemente anómala: terras / sulcados...

Mas não são  complicadíssimos, sempre, todos os tempos de espera? Não são intermináveis os dias, as semanas...quando vivamente esperamos alguém? Este quiasmo é a figura literária que melhor exprime tal situação.

Na quintilha que se segue, chamo a vossa atenção para o aposto que é aquele constituinte: torçal fluindo.
Notai que o nome torçal existe por derivação regressiva do verbo torcer. Torçal é um cabo (ou um fio) resultante da torção de diversos fios.
O sujeito poético define-se aqui como torçal fluindo, querendo dizer  que contava o tempo, que se contorcia com o tempo... adejando entre a neblina.

Também aquele verbo adejar nos não parece casual. No mesmo livrinho donde retirámos este poema, logo na página 51, há um poema dedicado a  Adê.  Será que aquele adejando  tem tudo a ver com o rosto esperado?  É nossa convicção de que sim. Todos sabeis que a sua mulher, professora também nesta Escola, se chama Adelaide. A linguagem poética é, como sempre vos tenho dito, feita de sinais.

E concluímos:
Da leitura deste e de outros poemas de António Salvado, fica-nos alguma insatisfação pelo facto de ele ter optado por uma tipo de poesia difícil, pouco clara, envolta em permanente receio de se revelar.

Encontramos na sua poesia uma invulgar presença de pausas, que são o modo de ele sugerir ao leitor a descoberta e o encontro com a emoção.  António Salvado não acompanha o leitor na partilha da sua poesia; empurra-o, para que seja este a descobri-la. Estamos, decerto, perante uma opção respeitável - mas é quando ele se decide por uma expressão clara que nós deparamos com a grande poesia.
E, mais uma vez, não esqueçamos: a poesia constitui sempre um texto destinado a entrar num circuito de comunicação, ao encontro do leitor! Por isso, insistimos, a clareza é-lhe essencial.

Uma nota ainda, de caracterização formal: a sua poesia é dominada pela presença do nome, e pelo aposto - o que não é muito frequente, pois é ao adjetivo e ao verbo que cabe a importante função poética de sugerir.
Será por esta falta do adjetivo que ele, com pausas marcadas, nos empurra para o campo do imaginário?
Esta nossa interpretação da poesia como encontro de emoções compreensíveis  é surpreendentemente coincidente com a interpretação que António Salvado  nos dá de seus próprios versos num posfácio da Difícil Passagem publicada em 1962:

            Abro sobre os joelhos o livro enquanto fecho os olhos.
            Procuro ler e do que vi pouco mais encontrei
            que a solidão de me saber fechado como um túmulo.
            .......
            Pequenas linhas, deixam o espaço maior em branco;
            e é nele que se diz a verdade, é nele que vive
            a confissão sincera, a alma aberta, a luz inteira!

É para um espaço em branco onde se diz a verdade, para um espaço em branco onde vive a confissão sincera,
            - é para um espaço em branco, fonte de luz, que a poesia de António Salvado pretende lançar-nos.
Mas... qual o caminho? Ele é que devia indicar-nos o caminho! Não o faz.  Daí a solidão resultante da  sua poesia, por vezes excessivamente fechada.

quinta-feira, 7 de junho de 2012


Poesia às quintas (2)

João Maia (1923-1999)
João Maia é um poeta da nossa terra, ali de Fundada (Vila de Rei). Cedo foi para o seminário dos Jesuítas, onde, entre outras coisas,  foi Padre, poeta, professor do Ensino Superior, crítico literário, comentador de rádio e televisão e grande escritor.
A seu respeito,  disse Bigote Chorão: Dizia Vitorino Nemésio que não é escritor quem escreve, mas só quem inventa escrevendo. Ora, … João Maia está sempre a inventar. Assim, a cotovia é “alegria do céu a tocar a terra”, o morcego lembra “farrapo esticado em varetas de guarda-chuva”.
A sua poesia, como a sua prosa, são invulgarmente belas. surpreendem sempre, tanto pela excelência da forma como pelo seu sentido poético.

Conheci-o muito bem. Foi meu professor de literatura grega.
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Exposição de Pintura

É preciso coragem
para ir ver a nossa angústia entornada
o último trapo a arder nos incêndios
e a última tábua da lancha naufragada.

Deixemos à porta a bengala e o chapéu
os conceitos as noções convicções tropeços
e a nossa doce paz e a nossa segurança.
Vamos medir a olho e a pesar sem balança
estes traços - restos que podem ser começos.

Primeira pergunta: - é isto o Céu ou o Inferno?
- Isto, meu senhor, não tem definição.
São tintas anónimas, talvez nuas, porque não?
o quadro não se vê mas acredite que é eterno.

Há de reparar que é um quadro só, por essas paredes fora
e mais: - que o seu último acabamento
somos nós que o damos nesta hora
neste momento.

Anda aí perdido um homem nessas tintas
abstratas que ninguém entende
(e aqui muito à puridade, vingue-se nisto!)
o quadro não se vende!
                        João Maia, Poesia (quase) Toda, p. 280


O poemazinho que hoje lemos é uma reflexão preparatória para  ida a uma  exposição de pintura (uma angústia entornada).
           
1. Disponhamo-nos a ver-nos na expressão artística dos outros.
A pintura, como todas as outras artes, é um confronto do homem consigo mesmo, ou melhor, é a luta de um artista à procura de si mesmo. Tenhamos, pois, a humildade de prestarmos atenção à luta dos outros - e entremos. Se é certo que aí encontraremos traços de luta alheia - é também muito provável que aí descubramos a nossa.

2. Deixemos à porta preconceitos e convenções. Vejamos demoradamente, e interroguemos.

3. A resposta bem conhecida: uma exposição de pintura não tem definição. São tintas entornadas por vários quadros, mas... o verdadeiro quadro não está ali. O que temos na exposição são várias tentativas dum quadro que ainda não foi pintado - e que nunca o será...                                       
                                   Anda aí perdido um homem nessas tintas
                                   abstratas que ninguém entende

Na pintura, na música, na poesia - em todas as artes -  anda sempre perdido um homem. A cada um de nós cabe descobri-lo (descobrir-nos) em qualquer expressão artística que, como sabeis, pode ser de cores, de sons ou de palavras.

João Maia é um poeta maior:
                        - pela sua inspiração ou visão poética das coisas
                        - pela sua capacidade de expressão inteligível
                        - pela sua vastíssima cultura