Poesia às quintas (3)
António Salvado é natural de Castelo Branco
– e aqui foi, durante muitos anos, professor de língua e literatura portuguesas,
no Liceu. Foi também diretor do Museu Tavares Proença Júnior, que transformou
num centro de irradiação cultural.
É casado com Adelaide Salvado, também professora
no Liceu. Aposentados, continuam ambos a investigar e a publicar.
O Coração Sussurrante
O coração
sussurrante
a alma aberta
esperavam que
virias
aguardavam que
terias
de a mim chegar
Foram mares foram terras
sulcados atravessadas
Torçal fluindo
eu ia contando o
tempo
vencendo as
horas os dias
veloz o medo
adejando entre a
neblina
e na orla do
desterro
discreto surgiu teu rosto.
(António
Salvado, Matéria de Inquietação, Edit.
Associados, pág.45)
Este poema é uma
verdadeira joia poética - e é a prova de que António Salvado tem qualidades e capacidade
para poder ter optado por uma poesia clara e sempre compreensível. Na grande maioria dos seus poemas, ele parece
ter esquecido que é ao poeta que cabe a tarefa de encontrar uma expressão que
possibilite a partilha da emoção estética com o leitor -
preferindo alinhar-se com os poetas vulgarmente apelidados de difíceis. E é pena!
Nós entendemos
que o refúgio no difícil é solução frequente de quem não é capaz
de ser claro.
Sabeis porque é
que há poetas difíceis? Sobretudo
porque a sua imaginação não
tem como suporte uma equivalente capacidade de expressão. Ou seja: intuem mais
do que são capazes de exprimir. Por outras palavras: a sua capacidade de
expressão não acompanha a imaginação. Por isso, é-nos é difícil descobrir o que
nem eles próprios foram capazes de dizer.
Mas também
reconheço que há poetas - e neles incluo António Salvado - dotados de boa
capacidade de expressão, mas que optaram pelo encobrimento, pela reserva,
pela ocultação de si...sugerindo aqui e além, mas preservando sempre o que eles supõem ser
a sua intimidade. Receiam que o leitor os tome pelo sujeito poético - e
ocultam-se, preservam-se, empurram o leitor para a interpretação. Trata-se,
penso, de decisão errada.
O poemazinho de
hoje é um poema de amor.
A primeira
estrofe descreve-nos o sujeito poético numa situação de expectativa. Mas notai
que ele não fala de si - mas do coração, que é onde o amor é mais sentido. E
mais ainda: o vir, para ele, é a mim chegar. Que bonito!
Fixemo-nos já na
estrofe seguinte: um dístico
Foram
mares foram terras
sulcados atravessadas
Estamos perante
um quiasmo notável.
Notai que o
quiasmo (nome de origem grega, derivado
da designação da letra X) é uma figura
algo complicada! Mencionam-se
dois elementos, os mares e as terras - e a sua adjetivação
respeita a ordem por que foram referidos estes nomes, provocando uma sequência
aparentemente anómala: terras /
sulcados...
Mas não são complicadíssimos, sempre, todos os tempos de
espera? Não são intermináveis os dias, as semanas...quando vivamente esperamos
alguém? Este quiasmo é a figura literária que melhor exprime tal situação.
Na quintilha que
se segue, chamo a vossa atenção para o aposto que é aquele constituinte: torçal fluindo.
Notai que o nome
torçal existe por derivação
regressiva do verbo torcer.
Torçal é um cabo (ou um fio) resultante da torção de diversos fios.
O sujeito
poético define-se aqui como torçal
fluindo, querendo dizer que contava o tempo, que se contorcia com o
tempo... adejando entre a neblina.
Também aquele
verbo adejar nos não parece casual.
No mesmo livrinho donde retirámos este poema, logo na página 51, há um poema
dedicado a Adê. Será que aquele adejando tem tudo a ver com o rosto esperado? É nossa convicção de que sim. Todos sabeis
que a sua mulher, professora também nesta Escola, se chama Adelaide. A linguagem poética é, como sempre vos tenho dito, feita
de sinais.
E concluímos:
Da leitura deste
e de outros poemas de António Salvado, fica-nos alguma insatisfação pelo facto
de ele ter optado por uma tipo de poesia
difícil, pouco clara, envolta em permanente receio de se revelar.
Encontramos na
sua poesia uma invulgar presença de pausas, que são o modo de ele sugerir ao
leitor a descoberta e o encontro com a emoção.
António Salvado não acompanha o
leitor na partilha da sua poesia; empurra-o, para que seja este a
descobri-la. Estamos, decerto, perante uma opção respeitável - mas é quando ele
se decide por uma expressão clara que
nós deparamos com a grande poesia.
E, mais uma vez,
não esqueçamos: a poesia constitui sempre um texto destinado a entrar num
circuito de comunicação, ao encontro do leitor! Por isso, insistimos, a clareza
é-lhe essencial.
Uma nota ainda,
de caracterização formal: a sua poesia é dominada pela presença do nome, e pelo
aposto - o que não é muito frequente, pois é ao adjetivo e ao verbo que cabe a
importante função poética de sugerir.
Será por esta
falta do adjetivo que ele, com pausas
marcadas, nos empurra para o campo do imaginário?
Esta nossa
interpretação da poesia como encontro de
emoções compreensíveis é
surpreendentemente coincidente com a interpretação que António Salvado nos dá de seus próprios versos num posfácio
da Difícil Passagem publicada em
1962:
Abro
sobre os joelhos o livro enquanto fecho os olhos.
Procuro
ler e do que vi pouco mais encontrei
que
a solidão de me saber fechado como um
túmulo.
.......
Pequenas
linhas, deixam o espaço maior em branco;
e é nele que se diz a verdade, é
nele que vive
a confissão sincera, a alma aberta,
a luz inteira!
É para um espaço
em branco onde se diz a verdade, para um espaço em branco onde vive a confissão
sincera,
- é para um espaço em branco, fonte
de luz, que a poesia de António Salvado pretende lançar-nos.
Mas... qual o
caminho? Ele é que devia indicar-nos o caminho! Não o faz. Daí a solidão resultante da sua poesia, por vezes excessivamente fechada.